"É provável que o senhor nunca
venha a ler esta carta, papai, mas...
Foi só há alguns anos atrás, eu
estava no complexo dilema de sair do armário. O senhor nunca vai saber muita
coisa sobre todo “boom” que houve naquela época, mas é importante mencionar: aceitar
a minha orientação sexual não foi o meu único problema naqueles dias. Havia
todo um emaranhado de sentimentos de ódio, preconceito, auto-flagelação mental,
vergonha e depressão, mas nada superava o medo de decepcionar quem eu amava, ou
seja, o senhor, mamãe, meu irmão e meus amigos.
De todos os ressentimentos que eu
mantinha naquela época, restou apenas um, que talvez nunca seja extinto
totalmente: a insensibilidade das pessoas que eu amava, inclusive do senhor.
Vocês não precisavam saber pelo que eu estava passando, ou o motivo da minha
tormenta; bastava que vocês simplesmente percebessem que algo estava errado,
que algo estava acontecendo comigo. E devido a todo o meu quadro social, de
isolamento, de inversão dos ciclos de sono, de redução na comunicação, de
ausência generalizada, vocês poderiam facilmente levar a sério e perceber que
havia algo errado e ruim se passando comigo.
O bonito de tudo isso é que
passou. Faz tão pouco tempo, mas eu enxergo como algo tão distante da minha
realidade e tão antigo. Depois que eu comecei a me aceitar e me entender como
gay, várias outras questões incompletas em mim foram resolvidas de forma tão
rápida e fácil que eu me pergunto o quanto a homossexualidade me fez uma pessoa
melhor. De lá pra cá, eu fortaleci amizades, abandonei pessoas com boas razões,
experimentei relacionamentos, experimentei também a solidão, entrei em contato
com meus demônios internos, desmistifiquei o sexo, adquiri independência
financeira, morei em uma nova cidade, atualmente moro na mesma casa que o
senhor, mudei de religião, conheci outros países e fiz minha primeira tatuagem.
Ta-tu-a-gem. É só um desenho com
tinta sob a pele. Quem estava comigo no dia da primeira sessão viu, a cada
minuto de dor da perfuração, a minha felicidade e satisfação da realização de
um sonho, o meu sonho. O senhor precisava ter visto o apoio que seu outro filho
– meu irmão – me deu: foi um dos momentos de maior carinho, cuidado, proteção e
cumplicidade entre eu e meu mano. E no dia seguinte, o cuidado e apoio da minha
mãe e do meu primo, comprando os materiais pro curativo e também fazendo o
curativo 3 vezes por dia. Era tanto apoio e felicidade dos meus familiares e
amigos... até ter a experiência de voltar a conviver com o senhor.
Onde eu enxergava felicidade, satisfação
e realização, o senhor enxergava apenas nojo, decepção, desprezo. Não foi
preciso que o senhor visse a tatuagem inteira para sequer olhar nos meus olhos
e balançar a cabeça em tom de reprovação sempre que eu passava; um ato
compartilhado pelas suas irmãs. E todo esse desprezo velado, sem uma única
palavra dita, sem uma única demonstração de afeto, nem nenhuma naturalidade do
tratamento cotidiano não passaram despercebidos por mim. E mais uma vez, apesar
de não gostar e não saber os motivos que me levaram a fazer a tatuagem, o
senhor novamente não viu que algo se passava comigo... porque eu entendo que eu
fiz uma escolha e ela tem consequências, mas independente de tudo isso, era
muito fácil o senhor perceber que minhas costas estavam machucadas, feridas, doendo,
sangrando; e eu precisava de ajuda para cuidar dessas feridas intencionais, sob
pena de adquirir uma infecção.
Por conta da sua notória, antiga
e contínua negligência como pai, eu fui forçado a acordar minha grande
amiga-e-irmã às 6 da manhã por vários dias, apenas para que ela cuidasse de
mim, apenas para que ela cumprisse o papel que poderia/deveria ser seu. E
requisitá-la todos esses dias, tarde da noite, pra que o curativo fosse refeito
antes de eu dormir. Como foi bom saber que eu posso contar com ela pra isso,
como foi bom reforçar esses laços, mesmo que nunca tenham se enfraquecido. Como
foi importante saber que, mais uma vez, eu não posso contar com o senhor. Como
foi bom o senhor ter se ausentado e isso ter me deixado plenamente à vontade
para excluí-lo totalmente, sem que eu precisasse pedir ajuda por nem mesmo uma
única vez.
Acredite papai – e isto não é uma
praga, é apenas a constatação do provável desenrolar dos fatos: eu não vou
morar pra sempre com o senhor. Eu ainda pretendo estudar mais, me preparar e me
capacitar, ter um emprego melhor, talvez ser dono do meu próprio negócio, morar
numa cidade maior, ter um salário maior... são tantos objetivos de uma vida que
ainda está na etapa ascendente da primeira fase da juventude-adulta. E o senhor,
papai? O senhor caminha para a velhice, pra solidão, pra etapa descendente da
vida. E, infelizmente, eu não consigo me enxergar suprimindo ou anulando
NENHUMA das minhas conquistas futuras para dar o suporte que o senhor possa vir
a precisar. Não por ressentimento ou vingança, papai, eu só não quero ter que
dividir a minha felicidade de homem independente, bem sucedido, gay e
multi-tatuado; já que é evidente que pelo menos duas dessas condições vão te
incomodar pro resto da vida e, consequentemente, te trazer infelicidade."