24 de junho de 2012

"SEM-VERGONHICE" VS HIPOCRISIA



Hoje estava passando uma reportagem no Fantástico sobre manifestações contra a exposição, violência e o turismo sexual de mulheres na Ucrânia, seguido de manifestações da Marcha das Mulheres e da Marcha das Vadias; parei pra ver apenas porque se tratava dos movimentos feministas (leia antissexistas) que aproveitaram o período do Rio+20 para obter maior visibilidade. Nesse momento, uma tia criticou severamente a nudez como forma de arma política, dizendo ser  só uma "sem-vergonhice" e "coisa de gente que não tem o que fazer".

Fico pensativo quando acontece esse tipo de coisa. Na própria Globo, na nova versão da novela Gabriela, é abordada uma série de formas de expressão (ou falta dela) e caracterização do papel (sempre inferior) da mulher na sociedade daquele tempo, além do constante uso de rótulos: "puta", "beata", "senhora de família", "sinhazinha", "retirante", "vagabunda". E não sem críticas, a cada cena onde um homem deseja "usar" sua esposa como mero objeto do sexo, ou nas cenas onde um sujeito casado deixa sua esposa em casa e vai divertir-se no bordel da cidade com prostitutas; em cada cena dessas, a mesma tia supracitada declarava verbalmente o desprezo por tal comportamento social da época e o alívio por viver em tempos bem diferentes...

Mas seria mesmo este tempo tão diferente? É fato que os movimentos anti-sexismo e anti-homofobia (uma derivada da misoginia e do machismo, tanto para gays quanto para lésbicas) mudaram drasticamente o comportamento social, mas não o suficiente pra todo mundo sentar no sofá, ver esse tipo de reportagem e achar que "isso já é ir longe demais". Mulheres ainda são estupradas; esposas ainda apanham dos maridos; o salário das mulheres ainda é 75% menor que o dos homens, mesmo quando ocupam os mesmos cargos; juízas, políticas e advogadas de sucesso ainda sofrem mais ameaças que homens nos mesmos papéis; garotas ainda são objeto de comércio no tráfico e turismo sexual; tudo isso acontece DIARIAMENTE. Mas tudo isso parece pouco, ruim mesmo é ir pras ruas brigar contra tudo isso de peito de fora. Violência é aceitável, enquanto "vulgaridade" não, é isso mesmo, Brasil?

Acho impressionante a forma como o machismo consegue ser tão enraizado na sociedade a ponto de os próprios prejudicados por esse legado usarem o discurso preconceituoso contra sua própria liberdade e direito à igualdade. É o mesmo contexto que faz uma mulher mais conservadora se colocar no direito de julgar outra mulher de "vadia" e "vagabunda" apenas porque ela quis usar algo mais confortável e exposto; o mesmo contexto que um homossexual mais discreto ou mesmo ativo usa pra se colocar no direito de julgar e difamar outros gays mais afeminados ou passivos; é o mesmo contexto onde uma mulher casada e recém-mãe abdica do próprio emprego e assume o papel de mãe-em-tempo-integral enquanto o marido continua na rotina confortável de chefe da família.

E apesar de tudo isso, a única atitude que eu consegui realizar foi ficar paralisado e bestificado ao ver mais uma mulher-machista e tão próximo do meu núcleo de convivência. Eu poderia tentar discutir e até educá-la sobre o contexto onde tirar a camisa e mostrar os seios é bem melhor do que ficar vendo TV e criticando sobre o comportamento alheio, mas... sinceramente? As vezes esse meu lado politizado dá lugar ao do Alysson nojentinho, que acredita que se o mundo tá nessa merda, é porque bem mais de 50% da população merece esse mundo. Porque aqui se faz e aqui mesmo se paga.

"No canto com seus amigos, você apostou 5 dólares
Que ganharia garota que acabou de entrar,
Mas ela te acha um idiota
Nós não nos produzimos só pra você ver
Então, pare de derramar sua bebida em mim

Você sabe quem você é
Se achando, falando merda,
Mas você vai voltar sozinho para casa, não é?"


(P!nk - U + UR hand)


9 de junho de 2012

TA-TU-A-GEM



"É provável que o senhor nunca venha a ler esta carta, papai, mas...

Foi só há alguns anos atrás, eu estava no complexo dilema de sair do armário. O senhor nunca vai saber muita coisa sobre todo “boom” que houve naquela época, mas é importante mencionar: aceitar a minha orientação sexual não foi o meu único problema naqueles dias. Havia todo um emaranhado de sentimentos de ódio, preconceito, auto-flagelação mental, vergonha e depressão, mas nada superava o medo de decepcionar quem eu amava, ou seja, o senhor, mamãe, meu irmão e meus amigos.

De todos os ressentimentos que eu mantinha naquela época, restou apenas um, que talvez nunca seja extinto totalmente: a insensibilidade das pessoas que eu amava, inclusive do senhor. Vocês não precisavam saber pelo que eu estava passando, ou o motivo da minha tormenta; bastava que vocês simplesmente percebessem que algo estava errado, que algo estava acontecendo comigo. E devido a todo o meu quadro social, de isolamento, de inversão dos ciclos de sono, de redução na comunicação, de ausência generalizada, vocês poderiam facilmente levar a sério e perceber que havia algo errado e ruim se passando comigo.

O bonito de tudo isso é que passou. Faz tão pouco tempo, mas eu enxergo como algo tão distante da minha realidade e tão antigo. Depois que eu comecei a me aceitar e me entender como gay, várias outras questões incompletas em mim foram resolvidas de forma tão rápida e fácil que eu me pergunto o quanto a homossexualidade me fez uma pessoa melhor. De lá pra cá, eu fortaleci amizades, abandonei pessoas com boas razões, experimentei relacionamentos, experimentei também a solidão, entrei em contato com meus demônios internos, desmistifiquei o sexo, adquiri independência financeira, morei em uma nova cidade, atualmente moro na mesma casa que o senhor, mudei de religião, conheci outros países e fiz minha primeira tatuagem.

Ta-tu-a-gem. É só um desenho com tinta sob a pele. Quem estava comigo no dia da primeira sessão viu, a cada minuto de dor da perfuração, a minha felicidade e satisfação da realização de um sonho, o meu sonho. O senhor precisava ter visto o apoio que seu outro filho – meu irmão – me deu: foi um dos momentos de maior carinho, cuidado, proteção e cumplicidade entre eu e meu mano. E no dia seguinte, o cuidado e apoio da minha mãe e do meu primo, comprando os materiais pro curativo e também fazendo o curativo 3 vezes por dia. Era tanto apoio e felicidade dos meus familiares e amigos... até ter a experiência de voltar a conviver com o senhor.

Onde eu enxergava felicidade, satisfação e realização, o senhor enxergava apenas nojo, decepção, desprezo. Não foi preciso que o senhor visse a tatuagem inteira para sequer olhar nos meus olhos e balançar a cabeça em tom de reprovação sempre que eu passava; um ato compartilhado pelas suas irmãs. E todo esse desprezo velado, sem uma única palavra dita, sem uma única demonstração de afeto, nem nenhuma naturalidade do tratamento cotidiano não passaram despercebidos por mim. E mais uma vez, apesar de não gostar e não saber os motivos que me levaram a fazer a tatuagem, o senhor novamente não viu que algo se passava comigo... porque eu entendo que eu fiz uma escolha e ela tem consequências, mas independente de tudo isso, era muito fácil o senhor perceber que minhas costas estavam machucadas, feridas, doendo, sangrando; e eu precisava de ajuda para cuidar dessas feridas intencionais, sob pena de adquirir uma infecção.

Por conta da sua notória, antiga e contínua negligência como pai, eu fui forçado a acordar minha grande amiga-e-irmã às 6 da manhã por vários dias, apenas para que ela cuidasse de mim, apenas para que ela cumprisse o papel que poderia/deveria ser seu. E requisitá-la todos esses dias, tarde da noite, pra que o curativo fosse refeito antes de eu dormir. Como foi bom saber que eu posso contar com ela pra isso, como foi bom reforçar esses laços, mesmo que nunca tenham se enfraquecido. Como foi importante saber que, mais uma vez, eu não posso contar com o senhor. Como foi bom o senhor ter se ausentado e isso ter me deixado plenamente à vontade para excluí-lo totalmente, sem que eu precisasse pedir ajuda por nem mesmo uma única vez.

Acredite papai – e isto não é uma praga, é apenas a constatação do provável desenrolar dos fatos: eu não vou morar pra sempre com o senhor. Eu ainda pretendo estudar mais, me preparar e me capacitar, ter um emprego melhor, talvez ser dono do meu próprio negócio, morar numa cidade maior, ter um salário maior... são tantos objetivos de uma vida que ainda está na etapa ascendente da primeira fase da juventude-adulta. E o senhor, papai? O senhor caminha para a velhice, pra solidão, pra etapa descendente da vida. E, infelizmente, eu não consigo me enxergar suprimindo ou anulando NENHUMA das minhas conquistas futuras para dar o suporte que o senhor possa vir a precisar. Não por ressentimento ou vingança, papai, eu só não quero ter que dividir a minha felicidade de homem independente, bem sucedido, gay e multi-tatuado; já que é evidente que pelo menos duas dessas condições vão te incomodar pro resto da vida e, consequentemente, te trazer infelicidade."

Pra assistir/ouvir (e ler a tradução) depois da postagem: