22 de junho de 2010

STEP BY STEP...


A história começa no dia 2 de maio de 1987 em Belém-PA. Eu não sei se fez sol, se choveu (em se tratando do Pará, 99% de chances de ter chovido) se foi um dia importante, se foi um dia triste, se foi um dia cinzento, aliás, não sei praticamente nada sobre esse dia. Sei apenas que foi o dia em que nasci. Minha mãe jurava que daria a luz a uma menina, já que a gravidez foi completamente oposta, desgastante, conturbada e turbulenta, se comparada à gravidez do meu irmão mais velho. Essa foi a primeira vez que eu contrariei as expectativas da minha mãe (o que viria a se repetir muito mais pela frente), quer dizer, nem tanto... eu digo, humoristicamente, que naquele dia, nós empatamos.

As primeiras lembranças que eu tenho de vivo são flashes muito rápidos, em cidades que eu não reconheço. Na primeira real e nítida lembrança que eu tenho, eu estava sobre uma mesa, com um gravador e um microfone de brinquedo em minhas mãos, cantando uma música antiga, que eu só lembro alguns versos: “Se uma estrela cadente o céu cruzar e uma chama no corpo me acender, vou fazer um pedido e te chamar pro começo do sonho acontecer”. Meus primos gravaram esse showzinho e meus pais e meus tios adoravam ver. Naquela época, eu não era exatamente uma criança bonita, mas era realmente cativante. As pessoas gostavam de me carregar, de brincar comigo, de me ouvir falar ou cantar. Eu lembro que minha cor preferida era o vibrante e alegre amarelo e eu repetia isso compulsivamente. Eu era uma criança feliz e desinibida, que acreditava plenamente que o mundo era um lugar totalmente feliz e sem problemas tão graves assim.

Eu não sei exatamente quando esse Alysson “morreu”. O único ponto de referência é o de uma tarde cinzenta, por volta das 16 horas, quando todos os meus vizinhos (a maioria mais velhos que eu) me ridicularizaram publicamente no maior ato homofóbico que eu já sofri em minha vida. Me chamaram de bichinha, de viado, me imitavam afeminadamente... coisas do tipo. O detalhe: foram liderados pelo meu irmão. Outro detalhe: eu tinha aproximadamente 6 os 7 anos. Minhas atitudes naquela época eram, certamente, andróginas e assexuadas, mas isso não poderia passar em branco. Eu nem sabia direito o que era ser gay, nem tinha atração sexual por sexo algum, eu sequer tinha ereções voluntárias. E ali, naquele dia, mataram a “fada” dentro do Alysson.

Eu comecei, a partir de então, a brincar sozinho, a gostar de azul (uma cor fria e discreta), a conter minhas emoções, a desenvolver um senso se superioridade e arrogância sobre as pessoas, por puro medo e raiva de que elas pudessem me humilhar novamente. Eu deixei de cantar alto. Deixei de viver uma vida social infantil e, por pouco, perdi quase toda minha adolescência. Eu me enfiei num mundo onde existiam personagens de desenhos, de histórias, de fantasias, de jogos, de filmes, de virtualidade, onde eu sempre me via como superior aos outros, um herói, um semi-deus quase inalcançável. E o preconceito pela homossexualidade foi tão escancarado naquela fase da minha vida, que eu cheguei a acreditar que ser gay era realmente errado (mas esta história vocês ja conhecem).

Mas, acreditem, isso foi o de menos: eu permiti que me convencessem a ser um moralista de carteirinha. As pessoas diziam: seja honesto; estude para ser alguém na vida, ainda que isso sacrifique qualquer coisa; sexo/farra/festa é vergonhoso e sujo; não traia; ajude os amigos não esperando nada em troca; desvalorize dinheiro; respeite os mais velhos apenas por serem mais velhos; e trate bem os seus familiares, quase de forma incondicionalmente e rastejante, mesmo aqueles que não merecem. E quem dizia isso tudo eram pessoas desonestas, burras, promíscuas, vadias, infiéis, interesseiras, egoístas, materialistas, arrogantes, inescrupulosas, falsas e, obviamente, hipócritas.

Demorou muito, muito tempo pra que eu tivesse a consciência de criar e adaptar meu próprio código ético-moral. Demorou muito tempo para que eu pudesse abrir os olhos e enxergar além daquilo que diziam ser verdade, ser pecado, ser errado, ser certo. Demorou muito tempo, e custou toda a minha inocência, pra eu enxergar os humanos como seres que podem estar no limite da sua idealização de perfeito ou conceito de desprezível, e demorou mais ainda pra perceber que idealizá-las, conceituá-las e rotulá-las simplesmente é uma perda de tempo.

Hoje, 23 anos, 21 dias e várias horas depois do meu nascimento eu me dei conta do estrago que foi feito em minha vida, de como as coisas poderiam ter sido diferentes, de como eu poderia ter me tornado outra pessoa, caso a minha pequena sociedade fosse diferente. E não é sob a ótica de um “coitadinho de mim” ou “isso me traumatizará para sempre”, mas sim de um sincero e humilde pedido a mim mesmo: que eu não seja capaz de fazer nada parecido com isso na vida de ninguém.

Fico feliz que, há tempos, eu olho pro céu com a humildade de quem diz “você é grandioso e bonito”, e não com a arrogância de quem diz “eu te dominarei”. E passo a passo, eu só pretendo sobreviver...

Um comentário:

Cris Medeiros disse...

E vc tem que pensar que já pegou uma sociedade melhor do que uma ou duas gerações passadas...

Quando eu era adolescente as pessoas torturavam os gays assumidos, era uma coisa tão brutal que pouquíssimos assumiam... E fico imaginando como eram os gays da época da minha mãe...

Ainda bem que a tendência é melhorar...

Beijocas e bom retorno.